O inato e o adquirido

Parecem o mesmo, não são o mesmo. Coisas há que parecem naturais (de tão naturais que parecem) mas não são. E por vezes é difícil distinguir. Há só uma diferença: o adquirido pode ser mudado. Comportamentos adquiridos, por muito doloroso e difícil que seja, podem ser mudados.
Tomemos o bocejo: bocejar é inato (um bebé de dias boceja), pôr a mão automaticamente à frente é adquirido. Aprende-se mais tarde - ou não. Mas estes pequenos pormenores pode virar pormaiores. O próprio nem repara - um pouco como quem ressona não reparar que ressona, porque quando ressona está a dormir.

Todos os dias nos cruzamos com pequenos comportamentos agressivos, pouco cívicos, desagradáveis. As pessoas no autocarro que ficam à porta de entrada; as que no metro não deixam sair e barram a porta da entrada. (Serão carteiristas? Espero que não, porque senão Lisboa está mesmo cheia de carteiristas, em vez de «cheia de carteiristas» ser apenas uma expressão, uma hiperbolização de um «filingue».) As pessoas que aceleram para passar à frente dos outros. Os pequenos abusos e os pequenos abusadores.

Um dia, faz muitos anos, fui com dezenas de outros pais à primeira aula do meu filho mais velho na escola primária. As crianças estavam sentadas nas carteiras, onde iriam estar o resto do ano, a aprender pela primeira vez. Pais e mães estávamos de pé, ao longo da sala, para aquele primeiro momento simbólico de boas-vindas da professora: aos alunos, com quem iria trabalhar; aos pais, que iriam deixar ali os filhos sozinhos. Nisto, uma mãe muito auto-satisfeita, sem vontade de estar de pé, senta-se num lugar vago. E ali fica, com o sorriso petulante de quem está habituado a tirar vantagem. Implícito ali poderia estar um gesto de solidariedade com a filha e as outras crianças. Não era. Era mesmo preguiça (para quê estar de pé se se podia sentar?) e aquilo que muita gente faz em Portugal, porque pode: criar as suas próprias regras, não na vida pessoal, mas na via pública, por acaso o lugar errado para nos armarmos em «independentes» e exercermos o nosso direito a «eu faço o que quero». Era uma terrível mensagem para dar à filha e às outras crianças na sala.
Daí ao arrumar o carro em cima do passeio vai um passo. É um pequeno abuso, porque os passeios vão abatendo sob o peso do carro. E é um abuso que advém de um suposto direito: «Eu tenho direito a arrumar o carro». E de uma falsa necessidade: «Onde quer que eu arrume? Hã? Adonde quer que eu arrume?»
Geralmente, quando me fazem essa pergunta eu respondo com outra: que idade tem? Em seguida faço as contas e geralmente concluo: «Hum... Se nasceu nessa data o senhor não é meu filho. Por isso resolva vossemecê o seu problema.» Digo geralmente, porque há sempre excepções. Um par de vezes concluí que o infeliz que não sabia onde pôr o carro era mesmo meu filho. Aí abraçava-o e dava-lhe um paterno carolo: «A tua mãe não te deu educação? Já agora, como se chama?» Mas poucas vezes isso aconteceu. 
O abusador esqueceu uma regra essencial: não faças aos outros o que não queres que façam a ti.
Hoje, no Inimigo Público, suplemento satírico de sexta do jornal Público, vem este belo exemplo:


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